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As relações entre as fomes coletivas e coronavírus (COVID-19)

publicado: 07/04/2020 09h39, última modificação: 07/04/2020 09h40

Soldado espanhol aguarda ao lado de camas em hospital de campanha montado em Barcelona (Pau Barrena/AFP)

Nas últimas semanas o mundo vivenciou uma virada radical devido à expansão da epidemia do cornavírus (COVID-19). Com isso, passamos a escutar diariamente nos noticiários sobre as epidemias, pandemias, curvas de contaminação, sistemas de saúde, entre outros temas que não compunham o nosso consumo de informações diárias.

De modo geral, uma epidemia é quando uma doença atinge populações ou coletividades humanas. Normalmente estamos acostumados em tratar os problemas de saúde por meio da medicina clínica, quando os sintomas aparecem e nos direcionamos a um especialista individualmente. Sendo assim, devemos compreender o campo da epidemiologia como um ramo da saúde pública que busca compreender a distribuição das doenças nas populações, às vezes em grupos pequenos, mas na maioria das vezes em vastos grupos populacionais (OMS, 1973).

Outra discussão que passamos a presenciar diariamente, diz respeito a velocidade em que uma epidemia se propaga, como também os impactos causados à nível global. Isto é, como uma doença do interior da China propagou-se pelo mundo? Diversas justificativas são expostas nos meios de comunicação e periódicos científicos, as principais são: a indústria chinesa de animais selvagens, o consumo de morcegos, os hábitos alimentares culturais dos chineses, destruição dos habitats, a falta de capacidade institucional dos governos ao não conseguirem monitorar e tomar decisões efetivas no combate à epidemia etc.

Como mostra a trajetória histórica da ciência, os problemas naturais e humanos não possuem explicações únicas, na maioria das vezes são multifatoriais e se expressam na vida social de diversas formas. O que queremos deixar claro é que não pretendemos ter a verdade única, mas contribuir com a construção de uma consciência coletiva a respeito deste problema que a humanidade vive.

É possível organizar o pensamento sobre as doenças em dois grandes grupos: as doenças transmissíveis e as doenças não-transmissíveis. O que hoje espanta a sociedade está no primeiro grupo, uma doença respiratória transmissível que se prolifera pela humanidade em questão de dias. Por outro lado, cotidianamente, os cidadãos também vivem o drama das doenças crônicas não transmissíveis, como por exemplo, a obesidade, os problemas cardiovasculares, hipertensão, câncer etc.

Importante notar que, geralmente, as doenças transmissíveis advêm do mundo natural, enquanto as doenças não transmissíveis são uma combinação entre disposições biológicas com problemas criados pelo próprio ser humano. Em outras palavras, uma parte significativa das causas das doenças crônicas não-transmissíveis (DCNTs), estão vinculadas à alimentação humana e os modos (estilos) de vida. A partir de reflexões empíricas, compartilhamos aqui um pensamento que articula os dois tipos de doenças (transmissíveis e não-transmissíveis) ao tomar como base uma das raízes do cornavírus.

Como sabemos, os estudos apontam que o coronavírus surge a partir de uma prática alimentar no interior da China relacionada ao consumo de animais selvagens. Comercializados em mercados populares locais, estes contaminaram outras espécies de animais até desenvolver o cenário que estamos hoje. Mas a pergunta central é: por que os chineses consomem animais selvagens em larga escala? De fato, seria um simplismo apontar para uma única explicação, isto é, por causa de práticas culturais, das dificuldades geográficas e naturais, o descaso das autoridades etc. Procuramos destacar para uma causa entre as inúmeras: a fome. A partir de relatos e registros, é evidente que a origem da indústria de animais selvagens na China está relacionada à dificuldade de aquisição de alimentos por uma parcela da população camponesa em condições de pobreza aguda. Sabemos que a fome assola a humanidade há séculos, como também se expressa de diferentes maneiras nas populações. Há uma diferença entre inanição e fome oculta, a inanição é a imagem que temos de um indivíduo magro em condições extremas por não conseguir adquirir os alimentos. A fome oculta é quando populações se alimentam, mas possuem dietas com baixos valores micro nutricionais durante um longo período.

Portanto, há uma relação entre a indústria de animais selvagens com o problema da alimentação humana. Existem diversas explicações para isso: a dificuldade de produção e aquisição de alimentos no interior da China devido à a dificuldade de fazer uma agricultura diversificada, assim como a má distribuição da produção de alimentos saudáveis. Como bem coloca Josué de Castro em seu clássico, a Geopolítica da Fome (1957), o continente asiático, historicamente, expressa o problema da fome em vastas populações.

Portanto, existem instrumentos epidemiológicos (científicos) com o objetivo de identificar como o grupo de doenças transmissíveis se expressam nas populações – por exemplo, a gripe, tuberculose, malária etc. – como também, as doenças não-transmissíveis se manifestam, como a desnutrição, a obesidade, hipertensão problemas cardiovasculares etc. Como dito anteriormente, o que diferencia esses grupos de doenças é a forma de transmissão, em ambas, as medidas preventivas podem ser implementadas do ponto de vista das políticas públicas. No entanto, as causas das doenças não-transmissíveis estão mais vinculadas com a forma que nos organizamos em sociedades (formas de produção, alimentação e modos de vida). Isso não significa que as transmissíveis também não poderiam ser constrangidas pela ação coletiva, porém não é uma relação de fácil compreensão para o senso comum.

Não pretendemos inferir que a fome é a causa principal do coronavírus, mas, de acordo com a literatura, torna-se possível relacioná-la com uma dieta alimentar precária sem garantia, por exemplo, de questões sanitárias. O Direito Humano à alimentação humana adequada está contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948. Um período próximo à expansão – e institucionalização - da indústria de alimentos selvagens no Estado chinês (meados de 1950). Não cabe agora culpar país X ou Y, a questão central é levantar uma reflexão para dois caminhos da realidade contemporânea: 1) a necessidade de garantir a soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN). 2) questionar as condições alimentares das populações.

Da mesma forma que buscamos um sistema de proteção social - o bem estar social -, existem eixos que compõe tal sistema. A grande opinião pública está mais familiarizada com os sistemas de saúde, previdências sociais e sistema educacional. Dentre estes eixos posiciona-se também um sistema de segurança alimentar e nutricional.

No Brasil, possuímos o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), infelizmente não cabe neste artigo detalhar o seu funcionamento e dispositivos. Entretanto, de maneira geral, para compreender o funcionamento do SISAN é necessário apresentar a Lei orgânica de segurança alimentar e nutricional (LOSAN), um marco regulatório sobre a Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil. A Lei nº 11.346 foi instituída no dia 15 de setembro de 2006 e estabelece os meios de funcionamento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Todos estes esforços são adotados pelo seguinte motivo:

Art. 2º - A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população (Brasil, 2006).

            Deste modo, é de responsabilidade do poder público implementar políticas, planos, programas e ações, em parceria com a sociedade civil organizada, para efetivar o direito humano à alimentação adequada. Além disso, conforme destaca o Art. 7o da Lei nº11.346, de 15 de setembro de 2018:

Art. 7º - A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional da população far-se-á por meio do SISAN, integrado por um conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, afetas à segurança alimentar e nutricional e que manifestem interesse em integrar o Sistema, respeitada a legislação aplicável (Brasil, 2006).

            Importante registrar que no meio acadêmico e na opinião pública não há uma definição única sobre o conceito de segurança alimentar nutricional. Entendemos tal conceito a partir da seguinte definição,

“Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (II Conferência Nacional de SAN. Olinda, 2004).

            Neste contexto, destacamos o direito à alimentos de qualidade. Até o momento procuramos relacionar a alimentação humana com a qualidade dos alimentos que estão disponíveis para o consumo, levando em consideração o contexto socioeconômico em que determinada população está imersa.

Apenas para comparações quantitativas tomamos como exemplo a obesidade, uma doença crônica não-transmissível. Atualmente, os sistemas de saúde no mundo gastam equivalente à 2,8% do PIB mundial no combate, prevenção ou tratamento da obesidade. Valor semelhante comparado aos gastos com o combate ao tabagismo ou mesmo das guerras. Ademais, o Banco Mundial estima que um investimento de 70 bilhões de dólares durante dez anos é o suficiente para atingir as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sobre desnutrição das Nações Unidas. O retorno econômico estimado é de 850 bilhão de dólares. Por outro lado, a indústria de combustíveis fósseis e de alimentos recebem mais de 5 trilhões de dólares por meio de subsídios governamentais ao ano (SWINBURN et al; 2019). Boa parte da indústria alimentar está voltada para a produção de alimentos processados (miojos, bolachas, embutidos, carnes etc.) e não morcegos. Porém, sabemos que uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados também gera outros problemas para os sistemas de saúde, além de serem nocivos à saúde humana e ecológica.

A mudança radical que presenciamos nos dias atuais deve levantar uma discussão sobre as formas de produção das mercadorias, a alocação dos recursos na sociedade e os modos de vida incentivados na contemporaneidade por meio da publicidade massificada. De fato, o cornavírus e outras epidemias não são justificadas apenas pelo prisma da condição alimentar das populações, não nos interesses generalizar a este ponto. Contudo, se o campesinato chinês ou de qualquer outra região do mundo tivessem a garantia do direito humano à alimentação estaríamos na atual conjuntura? Essa é uma pergunta sem resposta fácil e direta, serve para provocar uma reflexão mais ampla dos problemas sociais constituídos historicamente.

Além disso, não é um problema apenas da alimentação do camponês, uma vez que, desde a era colonial, o modelo de produção agrícola aposta na agricultura de largos monocultivos, os quais destorem habitats e forçam o aumento das metrópoles ao expulsar os camponeses do ambiente rural. Como sabemos, os vírus buscam meios para sua reprodução, tanto na flora quanto na fauna. Portanto, quanto mais desmatamento maior será o número de contaminações nos centros urbanos.

Por fim, de acordo com o sociólogo Ulrich Beck (2010), vivemos em uma sociedade guiada pelo risco, que ultrapassa apenas uma visão das classes sociais. Isto é, se antes os problemas eram transferidos para as classes trabalhadoras, atualmente as elites não controlam mais totalmente os problemas criados pela própria sociedade industrial (poluição, mudanças climáticas, epidemias etc.). A modernização produz uma série de riscos (perigos e inseguranças). E, de modo geral, podemos atacá-los de duas maneiras: existe um grupo que está preocupado nas estruturas que causam os riscos, enquanto o outro grupo dedica esforços na mitigação dos riscos criados pela modernização. Na realidade objetiva sobre a epidemia do coronavírus, nos deparamos como medidas de mitigação como o isolamento social e investimento na infraestrutura de saúde. Contudo, não podemos deixar de questionar as raízes e estruturas que causam os problemas mais profundos na sociedade contemporânea.

Rafael Neves Fonseca
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB. Pesquisador do grupo de Pesquisa FomeRI (Fome e Relações Internacionais) e da REDAGRI (Rede de Estudos Agroalimentares Internacionais). rafaelnevesfonseca9@gmail.com.

Referências:

CASTRO, J. Geopolítica da Fome: Ensaio sobre os problemas de alimentação e de população no mundo – 2º volume. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.

BECK, U. Sociedade de risco: ruma a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010. 384 p.

SWINBURN, B et al. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet. p. 791-846. 23 fev. 2019.

ORGANIZACIÓN MULDIAL DE LA SALUD. Epidemiologia: guia de metodos de enseñanza. Washington, DC, 1973.